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Superando a ira e a mágoa

Superando a ira e a mágoa

É natural, nas situações de convivência, que tenhamos as mais diversas emoções, algumas delas com risco de prejuízo para nossa vida, dependendo da forma como são manejadas. Em especial, vamos tratar de duas emoções complexas que podem se tornar sentimentos inconvenientes e até prejudiciais à saúde, aos relacionamentos e à vida espiritual. Trata-se da ira e da mágoa.

A ira é uma emoção de indignação intensa e potencialmente agressiva que surge diante de uma percepção de injustiça ou por frustração e cria um potencial de hostilidade. A mágoa é um sentimento caracterizado pelo ressentimento e pela memória psicologicamente dolorosa de um fato danoso do passado provocado por outra pessoa, resultando em um comportamento passivo, reflexivo, com sensação de vulnerabilidade, que busca a empatia e o reconhecimento dessa dor por parte de outras pessoas. A falta do perdão em relação a esse dano dá espaço à mágoa. A relação entre essas emoções é que, se a ira não for satisfatoriamente resolvida, pode levar a uma situação de mágoa, um sentimento mais persistente, que pode durar anos.

A ira tem efeitos sobre a saúde, podendo favorecer a hipertensão, aumento da frequência cardíaca, aumento do hormônio do estresse (cortisol), problemas gastrointestinais, insônia e cansaço excessivo. A mágoa é uma dor emocional que tem os mesmos efeitos neurobiológicos de angústia que uma dor física sem, no entanto, localizar essa dor no corpo. As dores físicas e as dores psicológicas compartilham a mesma estrutura cerebral — o giro cingulado anterior — que produz a sensação desagradável, a agonia, o sofrimento. Quando uma pessoa magoada pensa ou fala que foi “ferida” ou “machucada” por alguém, ou está com o “coração partido”, expressões típicas de dor física, está apenas expressando seu sofrimento com uma linguagem respaldada pela ciência.

A Bíblia trata dessa conexão entre a dor psicológica e a dor física. “O coração alegre serve de bom remédio, mas o espírito abatido virá a secar os ossos” (Pv 17.22). A pessoa com mágoa persistente se encaixa nessa condição de “espírito abatido” e é mais facilmente atingida pelo cansaço, pelo desânimo, pela sensação de impotência diante dos desafios, ou seja, “ossos secos”, sem vitalidade. O salmista Asafe, cuja inveja dos ímpios o levou à mágoa e profunda sensação de impotência diante do mal, expressou sua angústia como “picadas nos rins” (Sl 73.21, versão ARC).

Além dos efeitos sobre o próprio corpo, ira e a mágoa podem afetar substancialmente os relacionamentos na família, no trabalho, na igreja e onde houver convivência com outras pessoas. Podem levar à escalada de conflitos entre as pessoas. Quando surgem os conflitos, é desejável que sejam controlados e resolvidos logo no início, já que o seu agravamento aumenta as chances de hostilidades e se tornam mais difíceis de abafar. A ira inibe a capacidade de julgamento e de avaliação objetiva dos fatos, favorecendo mal-entendidos nas relações interpessoais. Promove a desconfiança, aumenta a negatividade nas percepções e dificulta a comunicação e a colaboração entre as pessoas.

O sábio escritor em Provérbios percebeu e ensinou que “o homem iracundo levanta contendas, e o furioso multiplica as transgressões” (Pv 29.22). O autor da carta aos Hebreus adverte que situações persistentes de amargura, além de provocarem a privação da graça de Deus, podem contaminar muitas pessoas aumentando as situações de conflito e de desconfiança e comprometendo negativamente a convivência (Hb 12.15).

À luz do Evangelho, essa privação da graça de Deus remete aos aspectos espirituais dos sentimentos negativos persistentes. José consegue perdoar seus irmãos (Gn 50.15-21) porque reconhece que somente Deus tem a legitimidade para a retribuição do mal, lição repetida até os tempos do Novo Testamento pelo apóstolo Paulo (Rm 12.19). Jesus condiciona o perdão de Deus ao perdão ao próximo quando ensina a oração dominical (Mt 6.14, 15). O ideal cristão é o do perdão, como o perdão do pai do filho pródigo (Lc 15.11-32), de Jesus aos seus carrascos (Lc 23.34) e do sublime perdão de Deus à humanidade que Lhe desonrou com inimizade (Rm 5.8-10).

Se, por um lado, o cristão confia na graça divina para superar suas dificuldades, por outro, a partir do ensino bíblico, em conformidade com o que se conhece hoje na ciência, em especial na psicologia, essa superação requer conhecimento, decisão e atitude.

O conhecimento envolve saber que essas emoções e sentimentos decorrentes são naturais ao ser humano. O autoconhecimento é importante para a pessoa perceber quando é afetada por sentimentos negativos persistentes e elaborar estratégias para lidar com suas causas, seus efeitos e as soluções possíveis nos momentos em que ocorrem. No caso da ira, isso passa também por reconhecer a própria vulnerabilidade diante de situações que despertem a raiva ou indignação. A busca por ajuda profissional é fundamental nos casos em que o descontrole provoca prejuízos pessoais ou sociais relevantes. Inoculação ao estresse, terapia cognitivo-comportamental, treinamento em habilidades sociais, reavaliação cognitiva, controle cognitivo, tomada de perspectiva, entre outras, são algumas abordagens que um psicólogo pode usar para ajudar a pessoa a manter o equilíbrio em situações de estresse e resolver a falta de perdão. A psicologia, assim como a ciência em geral, é graça comum de Deus para o benefício do ser humano.

É possível, no dia-a-dia, adotar comportamentos que favoreçam o bem-estar emocional com base em estudos científicos. Tratando de superação da ira e da capacidade de perdoar, há uma correlação positiva destas com a prática da empatia, capacidade de ver aspectos positivos em muitas situações de sofrimento, expressar-se com equilíbrio e honestidade, foco no presente, exercícios de respiração, sono adequado, alimentação balanceada, exercícios físicos, comunicação empática e não-violenta, autocontrole. Conhecer (reflexão e autoconhecimento), decidir com inteligência e agir com objetividade em direção à solução saudável é o caminho que cada um de nós pode percorrer na prevenção de situações de estresse e vulnerabilidade emocional e redução dos efeitos dessas situações.

Em relação à dificuldade de perdoar, a lição áurea é dada por Jesus: o perdão ativo. Ainda que os sentimentos de mágoa persistam, quando o cristão reconhece que precisa perdoar pode agir conforme Jesus ensinou: amar os inimigos, fazer bem aos que nos odeiam, falar bem de quem nos detrata e pedir a Deus em oração pelo bem de quem nos persegue (Mt 5.44). Aqui o amor não é um sentimento, já que nem sempre controlamos o que sentimos; é uma questão de atitude, de, mesmo contra o próprio sentimento de mágoa, agir pelo bem de todos, inclusive os que nos fazem mal. A oração é um recurso fundamental nesse processo porque, conforme mostram estudos, ajuda no manejo de emoções negativas e facilita o perdão, favorecendo a saúde física e emocional.

Controlar a ira, não deixando que ela persista (Ef 4.26), e ter o perdão como reação habitual às ofensas dá a oportunidade, no que diz respeito aos sentimentos, para crescimento espiritual e verdadeiro. Além disso, há benefícios à saúde do corpo e da alma e à harmonia nos relacionamentos interpessoais. As prescrições bíblicas em relação ao autocontrole e ao perdão são valiosas para que o nosso propósito de vida abundante, com vistas a uma existência eterna com Deus, seja imune a situações estressantes e sentimentos limitantes à plenitude espiritual.

Por,

Zenilda Diniz
Psicóloga, Teóloga, Missionária e Palestrante.